Com a implementação da Lei Federal 13.964/19 (pacote anticrime), mais precisamente, no parágrafo 2o, do artigo 313 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva com “finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”, deve ser inadmitida.
Resolvido. A lei pôs fim a décadas de rompimento
com a Constituição e fez revigorar a maltratada presunção de inocência. O
encarceramento automático, amiúde a “bem do combate ao crime” teve fim com a
exigibilidade de requisito e fundamento que extrapolem o próprio existir de uma
persecução penal. Está resolvido, certo? O óbvio foi dito? Espere. Lembremos do
“interpretar condicionado” do Estado-juiz em que nada é o que parece ser, mesmo
as leis mais claras e impositivas suportam um “se”.
Expressões como “prisão com objetivo de interromper
a atuação das facções criminosas”, “prisão justificada na necessidade da
garantia da ordem pública ante o envolvimento do crime organizado” e “prisão
adequada porque envolve a participação em organização criminosa de alta
periculosidade”; têm sido cada dia mais recorrentes nas cortes como fundamento
para segregação cautelar.
Violação ao dever de motivação
A violação ao dever de motivação é patente,
expressões símiles não atendem ao mandamento do inciso IX, do artigo 93 da
Constituição e menos ainda à imposição do artigo 315 do CPP. Fundamentação que
se aplica a qualquer caso e utiliza do próprio tipo penal como suficiente ao
encarceramento cautelar (raramente provisório) deve(ria) ser tida por
imprestável ao processo penal, isso pois, não atinge o dever de fundamentação
das decisões judiciais e rompe com o due process of law (artigo 5º,
inciso LIV, Constituição).
Com isso, não se quer dizer que tais expressões não
possam ser utilizadas na decisão que decreta ou mantem a prisão, o que não pode
se permitir é a utilização dessas expressões como suficientes à segregação.
Devem ser argumentação-meio, jamais, argumentação-fim.
Isso é dizer, deve-se confrontar essas expressões,
por si, genéricas, com outros elementos do caso concreto, elementos que
diferenciem o caso em análise de todos os outros casos, fórmulas genéricas
podem ser usadas para corroborar a decisão que determina a segregação, enquanto
subsidiárias (argumentação-meio) ao fundamento principal que revela o periculum criado
(argumentação-fim).
Contemporaneidade do fato
Outro grande problema quando se fala de prisão
preventiva em casos de organização criminosa é o afastamento da
contemporaneidade do fato. Com crescente jurisprudencial, o entendimento
majoritário é de que o artigo 2o da Lei 12.850/13 é crime
permanente, portanto, afastado o critério da atualidade dos fatos.
Em nosso sentir, a adoção do critério
classificatório do crime (se é permanente, instantâneo, material, formal etc.)
não deve servir como fundamentação válida a afastar a disposição legal do § 1º,
do artigo 315 do CPP, onde é expresso: “Na motivação da decretação da prisão
preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a
existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da
medida adotada (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”.
Nos parece que a criação jurisprudencial para
justificar a prisão por fatos praticados em data longínqua malfere o
dispositivo processual penal mencionado, além de romper com o prisma
teleológico da medida cautelar. Isso porque, se o fato é antigo e ausentes
elementos concretos de razões novas ou contemporâneas de persistência na
prática criminosa, não se pode entender por atendido o periculum
libertatis.
Lembremo-nos que o periculum não é
requisito das medidas cautelares, mas sim seu fundamento, porquanto, no
processo penal, a aplicação é diversa da adotada no processo civil quando
abordamos as medidas coercitivas pessoais. O periculum in mora de
lá (CPC) não deve ser importado para cá (CPP), uma vez que não se trata de
perigo criado pelo atraso inerente ao decurso do tempo até que recaia sentença
definitiva no processo, e, sim, do perigo que decorre do estado de liberdade do
acusado. Portanto, para a sistemática processual penal, não é sobre lapso
temporal entre o provimento cautelar e o definitivo, sem embargo, é sobre a
situação de perigo criada pela conduta (atual ou contemporânea) do
imputado. [2]
Devir sancionatório
Por essas ponderações fica ainda mais evidente a
invalidade da fundamentação posta no entendimento de que fatos praticados por
organização criminosa denotam mais gravidade e dispensa da atualidade do
perigo, isso, pois, decisões assim não atendem ao caso concreto e se prestam a
(in)fundamentar qualquer caso, posto que, genéricas e imotivadas.
A fim de exemplificar a tese aqui defendida: se um
acusado do cometimento do crime de integrar organização criminosa (artigo 2o da lei 12.850/13) em 2017, tem sua prisão preventiva decretada em
2025, sob argumento de que a prisão é necessária para resguardar a ordem
pública porque envolve a participação em organização criminosa de alta
periculosidade, ainda que não tenha qualquer elemento de que continuou na
organização criminosa ou persistiu em outra, e; outro acusado em semelhante
situação, exceto pelo tempo do fato e antecedentes, este praticado em 2024, tem
sua prisão preventiva também decretada. Pergunta-se: qual decisão desperta
maior segurança quanto à aplicação das normas?
É proporcional que o acusado pelo cometimento de
fato ocorrido há quase dez anos, que seguiu sua vida longe de qualquer notícia
de prática delituosa, suporte a mesma medida aplicada a alguém que foi acusado
de praticar o mesmo delito há menos de um ano e possui antecedentes?
Se a resposta à última pergunta for positiva,
encaremos que se trata de aplicação da medida pessoal coercitiva para fins de
antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação
criminal, uma vez que nos dois fatos a semelhança é o delito imputado.
Logo, nada mais adequado que definir a prisão
preventiva como devir sancionatório.
Devir, do latim devenire, vir-a-ser, tornar-se [3]; o conceito
filosófico que se amolda ao presente estudo, enquanto processo de transformação
constante. Da prisão cautelar (situação de perigo criada pela conduta atual ou
contemporânea do acusado) que torna-se prisão em caráter de sanção, vez que
fundamentada tão somente na conduta imputada.
De modo que, a depender do tipo penal — mormente os
da Lei 12.850/13 e Lei 11.343/06 —, as cortes são mais tolerantes às decisões
genéricas e desprovidas de elementos do caso concreto.
Uns crimes são maiores
Isso é dizer, há crimes que são mais crimes que
outros. Por isso, a análise e enfrentamento às razões lançadas pela acusação
surtem mais efeito quando elencadas nas mencionadas leis criminais. Em nosso
sentir, como já dito, tais fundamentos tornam a decisão nula por não atender ao
dever de fundamentação das decisões judiciais.
Em conclusão, no início deste artigo foi
apresentada a Lei Federal 13.964/19, que expressamente disse o óbvio e proibiu
a prisão preventiva com “finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou
como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou
recebimento de denúncia” (§ 2º, 313, CPP). Portanto, não nos parece que
a-lei-não-disse-aquilo-que-tinha-que-dizer, do contrário,
disse-tudo-aquilo-que-tinha-que-dizer, posto que o que falta é boa vontade e
seriedade do julgador ao realizar o enfrentamento ao pleito de prisão cautelar,
enquanto magistrados(as) se deixarem seduzir pelo “canto das sereias” (Streck),
prisões injustas seguirão sendo decretadas e reautorizadas pelas Cortes país
afora.
É necessário romper com o devir sancionatório.
Prisão cautelar é excepcional e deve ter deferimento excepcional, o juiz pode
lançar mão da grave prisão quando esgotadas as outras medidas diversas (319,
CPP), porquanto, a prisão é sempre medida residual.
[1] Nesse sentido:
STJ – AgRg no RHC: 198290 SC 2024/0180909-9, Relator.: Ministro ANTONIO
SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 12/08/2024, T6 – SEXTA TURMA, Data de
Publicação: DJe 15/08/2024;
TJ-PA – HABEAS CORPUS CRIMINAL:
08184404420238140000 18298676, Relator.: ROMULO JOSE FERREIRA NUNES, Data de
Julgamento: 27/02/2024, Seção de Direito Penal.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 20
Ed. Saraiva Jur. São Paulo. 2023, p. 692.
[3] https://michaelis.uol.com.br/busca?id=XWKq
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