sábado, 27 de junho de 2020

Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala



26 de junho de 2020,]


Os nomes são palavras vãs, e nos ordenamentos dos Estados se verifica em demasia a cínica sentença de TALLEYRAND, de que Deus dotou o homem com a palavra para esconder a verdade. Em sentido absoluto, esta proposição é uma blasfêmia, e eu não a aceito. Mas TALLEYRAND considerava os estatutos políticos, e nesse ponto de vista a sua sentença é, frequentemente, uma tristíssima verdade. De nomes abusaram frequentemente os governantes para mistificar o povo, apresentando-lhe uma instituição odiosa sob color de palavra atraente. E o povo iludido aceitou, reconhecendo o engano somente quando a opressão dos fatos lhe fez sentir a realidade escondida sob aquela palavra[1].

A inspiração para o presente texto, que vai um tanto em forma de brainstorming, veio daquele brilhante e coerente apresentado na Coluna Limite Penal, nesta ConJur, em 19/6, pelas colegas Janaina MatidaMarcella Mascarenhas Nardelli e Rachel Herdy, sob o título “No processo penal, a verdade dos fatos é garantia". A questão não é simples e merece reflexões sérias de quem aceita pensar sobre o tema, embora sempre dentro de suas limitações; e mostra por que a dogmática do processo penal não pode ser ensimesmada, autorreflexiva e acrítica.
Por isso — e talvez antes de tudo —, é salutar entender que quem deseja falar de Direito Processual Penal (e isso é sempre possível ainda mais agora que está em voga) precisa ter uma certa precisão teórica e seus fundamentos; e os fundamentos dos fundamentos; e isso implica dialogar com a base teórica e filosófica dele, assim como com o cotidiano do foro, além de tudo o mais como o ambiente etc.
Como sabem todos, o objetivo daqueles que defendem a Verdade/verdade no processo penal é, aparentemente, o mesmo, qual seja, ter-se uma justiça melhor. A divergência que aparece desde logo, porém, diz respeito à concreta possibilidade de se alcançar tal objetivo; e mostra que o referido aparentemente não é em vão, pois, desde logo, percebe-se que há algo escondido no discurso da Verdade/verdade de alguns, transformando-os em lobos em peles de cordeiros.

As autoras — claro — não estão nesse grupo, embora — tudo indica — acreditem na Verdade/verdade, o que se pode ver pela assertiva do título: “a verdade dos fatos é garantia”. Restaria saber de que Verdade/verdade se trata, dado se poder ter presente que o escopo delas liga-se aos anseios democráticos do processo penal — junto com todos que pensam assim — quando almejam a “garantia”; logo, contrapondo-se aos antigarantistas. Elas (que trabalham seriamente com a epistemologia), contudo, não param aí e, para surpresa de muitos processualistas penais, afirmam "que a busca pela verdade está a serviço do direito de defesa, em toda a sua amplitude". Alguns, mais críticos, não gostaram, dado que entendem ter um longo caminho a ser percorrido para se poder concluir de tal modo, se é que é possível; e ele gira em torno da discussão da Verdade/verdade no processo penal. Afinal, quem sofre na carne a força do chicote não acredita que basta mudar o couro do açoite.  

Para tentar entender a situação, pareceu precisa a manifestação de Gustavo Badaró em uma rede social: “É difícil para os processualistas penais aceitarem a importância da verdade como uma ideia regulativa do sistema, mesmo que o seu conhecimento pleno seja inatingível”. A frase do Titular da USP (que também trabalha com a epistemologia) por si só já basta para colocar em xeque o fundamento do fundamento do texto, ou seja, a questão da Verdade/verdade conforme trazida, para o processo penal, a partir da epistemologia. Gustavo Badaró, como sói acontecer, foi honesto, razão por que, dentre outras, é respeitado por todos.

Veja-se.

De que Verdade se trata e o discurso da Verdade/verdade

"É difícil para os processualistas penais aceitarem a importância da verdade como uma ideia regulativa do sistema", disse o estimado professor. E não aceitam mesmo — de modo geral, diga-se — porque há quase 100 anos isso já está, no processo penal, de certa forma superado, salvo pelos que seguiram fazendo dele um mero ramo da Teoria Geral do Processo, da qual Aury Lopes Jr. tanto fala, com razão, inclusive por conta do presente tema.

Ora, começou em 1924 — repita-se: 1924! — a famosa polêmica Florian v. Carnelutti sobre a Verdade/verdade no processo penal. E todos deveriam conhecê-la. Foi em 1924, 1925 e 1926. Sem ela você não entende, por exemplo, a razão da disputa verdade material v. verdade formal.

Era um Carnelutti — vencedor, diga-se de passagem — que ainda acreditava na verdade, na forma do discurso que sempre se fez. E desde lá a questão ganhou novos contornos, salvo para quem, mesmo trabalhando com processo penal, não foi atrás e ficou ligado à TGP, muito confortavelmente centrada numa verdade formal ou algo assim. Taruffo que o diga.

Verdade formal ou seus aparentados (dentre elas a endoprocessual, como queria Hassemer, tão só para situar uma posição mais atual no processo penal) servem pouco para fundar algo mais realista, inclusive aos acusados, como querem os que acreditam na Verdade/verdade. Ao contrário, é justo ele (o discurso da Verdade/verdade) que dá lastro para essa gente dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa (Streck); e por isso se apresenta, sempre, como vago; e serve de esteio para qualquer leitura, sendo usado ideologicamente.

Então, aparentemente, com esse discurso, as pessoas pensam ser contra os antigarantistas, mas, no fundo, jogam no mesmo time deles, não só porque fazem o mesmo discurso como, por outro lado, justificam ou legitimam o que pregam ou fazem. O STF, por exemplo, diz o que é a verdade do processo; erra ou pode errar por último (como disse o ex-ministro Eros Grau, com honestidade); e quem pensa assim erra junto porque não tem argumento para dizer que a verdade dele não serve, a não ser que construa outra meia-verdade ou não-verdade ou inverdade. Só que, quem sabe, um pouco mais próxima do que deveria ser o conhecimento que se pode ter sobre o fato da vida.

Se assim é, há de se voltar para o ponto de partida, desde o lugar de quem vive o processo penal e não brinca com o resultado dele: tem algo lá (o crime, por exemplo), mas não se tem palavras para dizê-lo como um todo. O que tem lá só vem, pela linguagem, em partes; e elas não são o todo, logo, só são — pretensamente — o todo da parte; e o pretenso todo da parte não é senão o todo da parte e não o todo. Isso está, de certa forma, em um texto imprescindível de Carnelutti (já não mais o de 1925), no qual usa Heidegger: Verità, dubbio e certeza, de 1965, ao qual se pode anotar e onde está o original traduzido: (MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In Observações sobre a propedêutica processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, pp. 159-188).

Carnelutti é preciso: "Alguma coisa disso comecei a entender com a meditação sobre o conceito de parte, que constitui uma das bases do meu modo de pensar. E quem me ajudou, de um primeiro modo, ainda que fosse muito distante da meta obtida no escrito, que recordei há pouco, foi o filósofo Heidegger com aquela que foi, e deveria ser, a sua sinfonia incompleta: o “Sein und Zeit”, onde fala da Weltlichkeit der Sache, que me tocou profundamente e que traduzi, nas primeiras páginas dos Dialoghi con Francesco con universalità della cosa. Justamente porque a coisa é uma parte; ela é e não é; pode ser comparada a uma moeda sobre cuja cara está gravada o seu ser e, sobre a sua coroa, o seu não-ser. Mas para conhecer a verdade da coisa, ou digamos, precisamente, da parte, necessita-se conhecer, tanto a sua cara, quanto a sua coroa: uma rosa é uma rosa, ensinava a Francesco, porque não é alguma outra flor; queria dizer que para conhecer verdadeiramente a rosa, isto é, para chegar à verdade, é necessário conhecer não somente aquilo que a rosa é, mas também aquilo que ela não é. Por isso, a verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma coisa, refiro-me, também, a um homem. Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós."

Enfim, não se pode nominar a Verdade, mesmo porque se iria ao infinito. Mas para quem acredita no discurso da verdade, ela é — sim — possível; mesmo que não seja. E isso alcança garantistas e antigarantistas. Todos juntos, falando a mesma linguagem. Simples assim. Logo, se opostos se encontram de maneira tão substancial, algo está errado, fora da ordem; e o problema está em outro lugar.

Epistemologia e Verdade/verdade

A frase precitada, do professor Gustavo Badaró, tem uma segunda parte: "mesmo que o seu [da Verdade] conhecimento pleno seja inatingível."

Ora, até quem defende a Verdade/verdade (como ele), fazendo o seu discurso, reconhece — ou há de reconhecer se for honesto — que o conhecimento pleno é inatingível; logo, todo o conhecimento. Mas, como se sabe, conhecimento é epistemologia, tratada por muitos como gnoseologia. Se a Verdade está no todo, e epistemologicamente não se consegue atingir esse todo, quando dela se fala não é dela que se trata. Simples assim, de novo.

Tenta-se — é possível perceber — conhecer pela parte (aquela que se pretende possível como verdade; e que não é a Verdade), mas isso se faz, pelo menos no texto das autoras, pela busca: "A busca pela verdade pode ser resumida...". Mas seria mesmo "busca"? Enfim, isso é método! E Verdade/verdade não se discute com o verbo "buscar" e sim com o verbo "ser": Veritas est... Sem isso não se define ou tenta definir como deve ser. Alivia-se (no texto) o peso da posição, fazendo-a aparecer como uma tentativa. Isso, porém, diz pouco, pois, o que importa, é se é ou não é. Se é uma tentativa pode não ser; e aí naufraga tudo. Ora, sempre pode naufragar, de fato, tudo, se se fala de algo que não daquilo que se não apresenta. A linguagem, contudo, falseia o objeto tão só até certo ponto, justo porque os significantes deslizam e não dão conta dos significados. Saussure, Jakobson e Lacan teriam muito a dizer neste ponto.

Em suma, fala-se da Verdade/verdade mas não se diz claramente o que ela é. Sabe-se, todavia, que seguindo os epistemólogos, estão falando de correlação; ou tentando: “A busca pela verdade pode ser resumida como a tentativa de fazer corresponder a premissa fática do raciocínio judicial com os fatos como efetivamente ocorreram”. Ocorre que a própria correlação deveria ser explicitada, pelo menos para se poder saber de qual se trata. Se for Aristóteles, por exemplo, já complica. Mas se não é, então é Platão? Agostinho? São Tomás? Não? Então é Tarski?

Mas ele (Tarski) não parece ser bem assim, do que é possível lembrar; e exige que o enunciado (a base é sempre analítica, ao que parece) deve ser satisfeito por todos os objetos, do contrário será falso. Logo, ele não se presta para mostrar o que se passa no processo penal, a não ser para se ter que reconhecer que nunca todos os objetos avalizam o conhecimento que nele entra. Afinal, qualquer um sabe que pela prova vem sempre produzida uma parcialidade (eis a resistência dos processualistas penais antes referidos) e, assim, tem-se, quando muito, algo para se fazer um discurso (de todo falso) sobre uma verdade formal ou endoprocessual que o intérprete (preponderante o que tem poder) diz qual é; e tudo segue como sempre em face desse discurso solto de um fio desencapado. E todos os defensores disso, juntos.

Enfim, aquela "busca pela verdade que pode ser resumida" não é feliz. Não é de busca que se deveria tratar e para o fim almejado, a correlação parece não servir; por sinal, no próprio Aristóteles se pode ver isso; da mesma forma como se pode ver pelo lugar que ele (Aristóteles) dá aos sofistas e à dialética a partir de outra leitura deles, como mostra Dussel de forma primorosa no capítulo primeiro da Filosofia da Libertação. Em suma, se no texto vale a posição de Tarski — com seu esforço na direção do "a neve branca" —, logo tal postura, pelo menos no processo penal, parece perder força.
Por sinal, o jogo lógico da afirmação dele pararia no Orhan Pamuk, o Nobel de Literatura de 2006. Nele, a neve é verdade, mesmo que não seja branca. Mas há de se deixar Tarski para se ir a alguém mais pesado — quem sabe — e que vai no coração do problema sem brincar com a linguagem, quando fala da morte: Heidegger. Ora, como sabem todos, no parágrafo 52 do Ser e Tempo vem afirmada a possibilidade da impossibilidade de todo existir, em face do fim do Dasein com a morte. É matéria, por evidente, para se ir adiante. Mas aqui o que interessa é que isso, quem sabe, pode ser lido no lugar da "parte", na alternativa todo/parte — que seguramente é... durante a vida — e, para desmentir a possibilidade, veja-se o que diz a letra de uma música do saudoso Belchior chamada, salvo engano, "Sujeito de sorte". Como dizia Freud (mais ou menos assim): os poetas não sabem o que dizem, mas sempre dizem antes. Ou algo assim. O estribilho de tal música diz:

"Tenho sangrado demais,
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro."

Ora, é uma brincadeira. Como em Tarski, há um falso problema que serve para a beleza da música, mas, sobretudo, para mostrar a força construtiva da linguagem. Fazer correlação ali seria piada. Por sinal, é porque se faz que o absurdo se apresenta, como se vê em Camus, Sartre e outros. O Estrangeiro é, quem sabe, o mais notável exemplo de que a lógica rígida de uma "ciência jurídica" caolha, que acredita na verdade, produz: um réu (Meursault) é condenado porque não chorou no enterro da mãe; ou por conta do brilho do raio do sol refletido na faca do árabe, dado como causa do crime no interrogatório.

Enfim, a verdade do processo penal nunca é a Verdade; e nem a verdade, se vista como uma parte; uma parcialidade. E sobre ela todos se debatem todos os dias vendo as pessoas serem julgadas, condenadas e morrerem... sempre em nome da tal Verdade/verdade. E mais: os que condenam — é bom não esquecer — fazem isso em nome dela, ainda que a não tenham, algo que, de certa forma, absolve-os, dado que julgam em cima do que dispõem: a parcialidade. De qualquer forma, ao discurso da Verdade/verdade dessa gente, em definitivo, não é possível dar guarida. E ainda que se não “ciência” que dê conta deles.

discurso sobre a Verdade/verdade, por outro lado, é eficaz, e seduz as pessoas que buscam nele o arrimo necessário para sua segurança. Não é pouca coisa e há de se respeitar. Não se pode, porém, fazer de conta que tal discurso não trata de outra coisa, inominável. Para essa (outra coisa) vale a crença; e aí se entende (como lembrou Carnelutti) por que Cristo disse: “Eu sou a Verdade”.  

No fundo, a parcialidade que o conhecimento traz ao processo penal permite — isso sim — que se trate daquilo que está enunciado nele, com as limitações que impõe, mormente porque se agregam elementos objetivos e subjetivos que se não eliminam. Desde este ponto de vista, tudo deve ser pensado de modo a que se tenha, no escopo do processo, um menor número de erros; e isso não é simples. Mas há que se tentar, por exemplo, com a refundação e um novo processo ancorado no sistema acusatório. O discurso sobre a Verdade/verdade, aqui, ajuda nada; antes, atrapalha.
Se disso não se derem conta, talvez seja melhor prestar atenção ao alerta de Carrara, que vai na epígrafe.

[1] CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal. Trad. de José Luiz V. de A. Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1957, Vol. II, pp. 318-9
Dedico este texto à memória do grande e querido amigo José Calvo González, Catedrático de Filosofia do Direito da Universidad de Málagafalecido em 23.06.20.  Pepe Calvo tinha um ampla bibliografia, mas o tema do presente texto é também influenciado por um texto dele apresentado no Painel inaugural do Primer Congreso Iberoamericano de Filosofía Jurídica y Social/XXVIII Jornadas Argentinas de Filosofía Jurídica y Social (La decisión y el rol de los tribunales en el Estado de Derecho), em Buenos Aires, 15.10.14, com o título: Decidir la verdade de los hechos: Narrativismo y verdade judicial constitucionalizada. Vai fazer muita falta e estará sempre na recordação dos amigos.
 é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.
Revista Consultor Jurídico, 26 de junho de 2020, 8h00


quarta-feira, 10 de junho de 2020

2ª Turma do STF condena Aníbal Gomes a 13 anos por corrupção e lavagem de dinheiro


A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou, nesta terça-feira (9/6), o ex-deputado federal Aníbal Gomes (DEM-CE) por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele foi condenado pelo recebimento, junto com um engenheiro, de R$ 3 milhões em propina para ajudar a firmar um acordo com empresas de que operam na Zona Portuária 16, no Rio de Janeiro, e a Petrobras. O contrato foi firmado em 2008 no valor total de R$ 60,9 milhões. Como ainda cabe recurso, ele, que hoje não exerce mandato e figura na lista de suplentes, poderá aguardar em liberdade.

Aníbal Gomes foi condenado a 13 anos, um mês e 10 dias de reclusão e a pagamento de 101 dias-multa. O cumprimento da pena terá regime inicial fechado, sem direito a substituição da pena por restritiva de direitos. Cada dia-multa terá o valor de três salários mínimos à época, corrigidos monetariamente quando a condenação for executada. 

Já o engenheiro Luiz Carlos Batista Sá foi condenado a seis anos, 11 meses e 10 dias de reclusão, além do pagamento de 50 dias-multa pelo crime de lavagem de dinheiro. No caso do engenheiro, o delito de corrupção passiva foi considerado prescrito. Ele cumprirá pena em regime semiaberto.

O julgamento do caso da Lava Jato foi concluído nos termos do voto do relator, ministro Luiz Edson Fachin. O revisor da ação penal (AP) 1002, ministro Celso de Mello, votou no mesmo sentido. Eles foram acompanhados pela ministra Cármen Lúcia.

Eles também decidiram que ambos os acusados ficam proibidos de exercer função pública, de qualquer natureza, incluindo integrar o conselho de administração ou gerência de empresa pública, pelo dobro do tempo da pena à qual foram condenados. O colegiado também fixou uma condenação de R$ 6,85 milhões por danos morais coletivos.

“A culpabilidade do acusado é particularmente exacerbada porque a transgressão da lei por parte de quem é depositário da confiança popular enseja juízo mais rigoroso se comparado ao cidadão comum. Também as circunstâncias do crime de lavagem igualmente demandam maior reprovação tendo em vista a utilização de uma rede estabelecidas para burlar a origem do proveito financeiro obtido a partir do delito de corrupção passiva. Desabonadoras ainda são as consequências do crime”, disse o relator ao definir penas e agravantes. 

Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes divergiram ao entender que, no caso concreto, o delito do ex-deputado não foi o de corrupção passiva, mas de tráfico de influência. Isto porque os delitos não teriam sido cometidos em função do cargo de parlamentar, mas pela relação pessoal de Aníbal com Paulo Roberto Costa, então diretor de abastecimento da Petrobras, possibilitando o acesso ao ex-diretor da Petrobras de forma independente ao mandato que exercia. 

De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), em 2008, o então parlamentar teria recebido propina do escritório de advocacia que representava empresas de praticagem para interceder junto a Paulo Roberto Costa e celebrar um acordo extrajudicial, tendo em vista que a Petrobras estava inadimplente desde 2004. 

Segundo a PGR, o deputado teria oferecido a Costa R$ 800 mil para facilitar as negociações. O acordo, assinado em agosto de 2008, envolvia o montante de R$ 69 milhões, dos quais R$ 3 milhões teriam sido entregues a Aníbal Gomes e a Luís Carlos Sá por meio da estrutura de outro escritório de advocacia.

A PGR sustenta que, a fim de ocultar e dissimular a origem, a localização e a propriedade desses valores, um escritório de advocacia e Luís Carlos Sá teriam simulado a aquisição de uma propriedade rural no Tocantins e repassado a maior parte do montante a terceiros vinculados de alguma forma a Aníbal Gomes e, em menor proporção, diretamente a ele.

Fachin apontou que a “atuação desviada” de Aníbal Gomes ficou evidente com o recebimento de valores injustificados. “Luís Carlos Sá detinha total ciência de ser Aníbal deputado federal, e atuou para a prática do crime, repassando boa parte da importância recebida por principal réu. Os interrogatórios judiciais confirmaram as acusações”, disse o relator na sessão da semana passada.

O ministro também citou os sucessivos depósitos nas contas de Aníbal Gomes que teriam ficado comprovados. Citou, ainda, um pagamento de 78,5% de honorários a advogado que chegaram a ser pagos. O conjunto das provas mostra, de acordo com ele, que Aníbal era o principal recebedor de todos os depósitos.

“Os fatos revelaram ter o parlamentar se imiscuído no plano dos atos deliberadamente nefastos, tendo realizado intensa mobilização em torno dessa demanda, desde o início dos contatos, quando se dispôs a acompanhar pessoalmente o encontro entre os interessados para tratar de assunto que fugia às suas ordinárias funções parlamentares”, observou.

A defesa do ex-parlamentar, feita pelo advogado Rodrigo Mudrovitsch, da banca Mudrovitsch Advogados, diz que que não há elementos de prova que confirmem o conteúdo da delação premiada de Paulo Roberto Costa sobre o suposto esquema envolvendo Gomes. “A maioria apertada da condenação mostra que há solidez das teses da defesa. O tema agora será debatido pelo plenário do STF”, disse.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Representação da vítima de estelionato não precisa ser formal, diz TJ-DFT


26 de maio de 2020, 21h52


Apesar de o parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal apontar que se se procede o processamento do crime de estelionato mediante representação da vítima, esta não precisa ser formal nos autos. Basta a demonstração inequívoca de que a vítima tenha interesse na persecução penal, o que pode ser aferido pela ida à delegacia para registro de ocorrência.
Ida à polícia basta para cumprir exigência do parágrafo 5º do artigo 171 do CP.

Com esse entendimento, a 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios deu provimento ao recurso do Ministério Público para que o juízo de primeiro grau examine a denúncia, como de direito.
A alteração legislativa foi feita pela Lei 13.964/19, chamada de "pacote anticrime", que acrescentou no parágrafo 5º as hipóteses em que a representação não é exigível para o processamento do caso do artigo 171: só se a vítima for a administração pública (direta ou indireta), criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maior de 70 anos ou incapaz.
“Em se tratando de crimes de ação penal pública condicionada, conforme jurisprudência prevalente no STJ e no STF, não é necessário que a representação obedeça maiores formalidades, sendo suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tenha interesse na persecução penal”, destacou o relator, desembargador Mario Machado Vieira Neto.
No caso concreto, a representação equivale ao comparecimento das vítimas à delegacia de polícia para noticiar os fatos logo após tomarem conhecimento da fraude. O boletim de ocorrência e a instauração de inquérito em face da notícia-crime demonstram “à saciedade, a vontade das vítimas de verem processada a acusada”, afirmou.
Decisão – nº 0702278-63.2020.8.07.0000

terça-feira, 26 de maio de 2020

Turma absolve réu por haver dúvida sobre crime de estupro de vulnerável


25 de maio de 2020, 7h39

Por unanimidade, a 1ª  Turma do Supremo Tribunal Federal  concedeu pedido de Habeas Corpus para absolver E.O.R. do crime de estupro de vulnerável. Na última terça-feira (19/5), em sessão realizada por videoconferência, o colegiado entendeu que existe dúvida razoável sobre a prática do delito e, por isso, o réu não pode ser considerado culpado.
O Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou E.O.R. pela suposta prática de atos libidinosos contra uma adolescente de 15 anos com deficiência mental em 2010, na clínica psicológica de sua mulher.
O juízo da 3ª Vara Criminal de Guarulhos o condenou a 12 anos de reclusão em regime fechado pelo crime de estupro de vulnerável, pois a limitação da vítima inviabilizaria a resistência aos atos. A condenação foi confirmada pela 4ª Câmara de Direito Criminal.
O HC foi impetrado pela defesa contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que manteve a condenação. Os advogados alegavam atipicidade da conduta e pediam a anulação do processo, por não haver provas da prática do crime.
Também questionavam a incapacidade ou a deficiência mental da vítima, conforme laudos oficiais emitidos pelo Instituto Médico Legal e pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Dúvida razoável

Em agosto de 2019, o ministro Marco Aurélio, relator do HC, negou pedido de liminar. O caso começou a ser analisado pela 1ª Turma em outubro e foi retomado na sessão de hoje com o voto do ministro Alexandre de Moraes pela concessão do HC. Segundo ele, o Estado tem a obrigação de comprovar a culpa do indivíduo, sem que permaneça qualquer dúvida, para afastar a presunção de inocência prevista na Constituição Federal. "O ônus da prova, sem que reste dúvida razoável, é do Estado acusador", frisou.

Em seguida, Marco Aurélio retificou seu voto e se manifestou pela concessão do HC com fundamento no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal (CPP), que prevê a absolvição do réu quando não existir prova suficiente para a condenação. O relator foi acompanhado por unanimidade, ao entender que o caso apresenta dúvida razoável, diante da divergência dos laudos técnicos em relação à saúde mental da vítima.
Princípio da não culpabilidade

De acordo com o ministro, um laudo concluiu que a vítima tem deficiência mental leve, e o outro apontou deficiência intelectual limítrofe. Em seu voto, ele afirmou que a situação de dúvida razoável é elemento indispensável do tipo penal e considerou que o princípio constitucional da não culpabilidade deve ser interpretado em benefício do acusado. Dessa forma, diante da ausência de comprovação do crime, o relator votou pela absolvição do réu.

Prova testemunhal

Os ministros levaram em consideração ainda depoimentos de todas as testemunhas ouvidas no processo, que disseram que E.O.R. ia poucas vezes até o local, principalmente para buscar a esposa. Segundo os relatos, a clínica era pequena, com apenas duas salas interligadas, e não havia possibilidade de os dois ficarem sozinhos sem que fossem vistos. Afirmaram também que, se algo tivesse ocorrido, elas teriam percebido. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

HC 170.117

Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2020, 7h39

Ação é suspensa para que réu tenha a chance de fazer acordo de não persecução


LEI "ANTICRIME"
Ação é suspensa para que réu tenha a chance de fazer acordo de não persecução


É razoável suspender temporariamente o curso de uma ação penal para que a defesa possa dar prosseguimento à tratativa já iniciada com o Ministério Público. 
O entendimento é do desembargador Paulo Fontes, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ao sobrestar julgamento para que o réu tenha a chance de fazer acordo de não persecução. A decisão foi proferida nesta quinta-feira (21/5). 
O caso concreto envolve um homem acusado de prática prevista no artigo 1º, I, da Lei  8.137/90, segundo o qual é crime contra a ordem tributária, passível de reclusão de 2 a 5 anos, omitir informação ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias. 
Em razão do novo coronavírus, a audiência de instrução foi reagendada uma série de vezes. Na última delas, acabou marcada para a próxima terça-feira (26/5). 
Ocorre que o réu manifestou interesse na realização do acordo de não persecução. O Ministério Público também se manifestou sobre a proposta, impondo, no entanto, a confissão, bem como a demonstração de impossibilidade de pagamento integral do dano causado, para dar início às tratativas. 
Mesmo depois que a defesa informou o juízo de primeiro grau sobre a possibilidade de acordo, a data da audiência foi mantida. Assim, o réu poderia ser condenado mesmo tendo a possibilidade de selar pacto com o MP. 
Embora tenha concedido a suspensão temporária, o magistrado ressaltou que “a análise acerca do preenchimento dos requisitos para a concessão do benefício é reservada ao órgão ministerial, não podendo o órgão julgador substituí-lo nessa função”.
Ainda segundo o desembargador, a ordem foi deferida levando em conta “a manifestação do ilustre membro do Parquet, que acenou com a possibilidade de a defesa ajustar-se aos dois aspectos que indicou como indispensáveis à pactuação do acordo [confissão e demonstração de impossibilidade de pagamento integral do dano]”. 

Os advogados Luciano F. Santoro e Julia Crespi Sanchez foram responsáveis pela defesa do réu. 

Lei “anticrime”

As novas hipótese de acordo de não persecução constam da lei “anticrime” (Lei 13.964/19). A medida é prevista no artigo 28-A do Código de Processo Penal: 

Artigo 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
 
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo
juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº2.848,  de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social,
a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.


sexta-feira, 15 de maio de 2020


Repercussão geral, segurança jurídica e estabilidade jurisprudencial

Pandemia da Covid-19 não constitui razão suficiente a justificar uma revisão na jurisprudência dominante do STF

14/05/2020

Presidente do STF durante sessão plenária por videoconferência / Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Inovação importante introduzida pela EC 45/2004 no art. 102, §3o, da Constituição, a repercussão geral é um requisito de cabimento do recurso extraordinário que condiciona o seu conhecimento à existência de uma questão constitucional cuja relevância econômica, política, social ou jurídica transcenda aos interesses intersubjetivos em disputa no caso concreto (CPC, art. 1.035, §1o). Isto significa que o acesso à jurisdição constitucional do STF deve ser justificado não apenas pela importância da solução do conflito de interesses específico que originou o recurso extraordinário, mas pela relevância de tal julgamento para o sistema de justiça, para o funcionamento das instituições políticas, para o bom andamento da economia ou para a sociedade de forma mais geral.
Mas o que o instituto da repercussão geral não significa – nem o STF deve permitir que ele venha a se tornar – é uma espécie de licença para se obviar o reconhecimento de direitos e a aplicação de garantias constitucionais a partir de argumentos fundados exclusivamente nas consequências econômicas a serem suportadas pelo Erário. Não há que se confundir o requisito de cabimento do recurso, agora vinculado à demonstração da sua relevância transcendente ao caso, com o uso dessa possível repercussão como pretexto para se deixar de aplicar a norma constitucional ou legal realmente aplicável àquela situação concreta. Argumentos ad terrorem de finanças públicas, articulados normalmente em ambientes de crise econômica, costumam pavimentar o caminho para o descrédito das instituições e rupturas do Estado de direito cujos custos sociais e econômicos acabam sendo sempre mais elevados.
Afinal, qual o papel institucional da repercussão geral como instrumento da jurisdição constitucional do STF? Embora o constituinte não a tenha dotado de efeitos vinculantes, parece clara a sua vinculação com a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima dos cidadãos. A disciplina do art. 1.035 do CPC, assim como a recente alteração promovida pela Lei n. 13.874/2019 no art. 19, VI, alínea “a” da Lei n. 10.522/2002, sugerem que a repercussão geral deve ser utilizada pelo STF como instrumento processual para preservação da sua jurisprudência, que só deve ser alterada em casos de uma distinção fática relevante entre casos concretos ou mutação inequívoca do parâmetro jurídico do controle de constitucionalidade.
Cumpre assinalar, logo à partida, que a manutenção de um padrão jurisprudencial exerce relevante papel institucional de estabilização e previsibilidade nas relações econômicas e sociais. Consolidado o precedente na jurisprudência da Suprema Corte, sua preservação ao longo do tempo é essencial para sua aplicação estável a todos os demais casos idênticos ocorridos no passado – condição sine qua non de isonomia na aplicação do direito a todos os que vivenciaram a mesma situação jurídica – bem como na garantia de calculabilidade das consequências de suas condutas futuras, fundadas na orientação traçada no precedente.
Neste sentido é que deve ser compreendida a previsão constante do art. 1.035, § 3º, inciso I, de que “haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.” Trata-se de uma situação em que o legislador ordinário, ao regulamentar a Constituição, cuidou de dar concretude ao princípio constitucional da segurança jurídica, considerado pelo próprio STF como ínsito à cláusula do Estado de direito, viabilizando que a repercussão geral seja presumida sempre que o acórdão proferido em instância inferior houver contrariado a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. A higidez do sistema de precedentes construído pelo Tribunal é um valor em si a ser preservado, como algo cuja relevância sistêmica, isto é, transcendente aos interesses concretos em disputa, é presumida pela lei.
Daí não decorre, por evidente, uma imutabilidade da jurisprudência dominante do Supremo, o que seria levar a ideia de segurança jurídica longe demais. Ao contrário, o que se postula com as regras de proteção da confiança legítima – aspecto subjetivo da noção de segurança jurídica – é a existência de algum grau de estabilidade e previsibilidade na mudança, quando esta  se revelar inevitável e necessária. Nos sistemas de precedentes jurisprudenciais, a distinção fática relevante entre casos concretos e a mutação do parâmetro de controle jurídico constituem as duas situações típicas de mudança de rotas decisórias, a justificar  a criação de um novo e distinto precedente (que passará a vigorar ao lado do antigo) ou a simples revisão do precedente antigo.
No primeiro caso, têm-se como relevantes elementos fáticos específicos do caso concreto para, à luz da norma constitucional ou legal aplicável, justificar um novo entendimento sobre a sua interpretação e aplicação. Tal foi o que se deu, por exemplo, no julgamento da ADPF n° 54, na qual o STF autorizou a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, ampliando as hipótese de excludentes de ilicitude previstas no Código Penal para a prática do aborto. Naquele caso, o fato da inviabilidade do desenvolvimento com vida do nascituro, revelado pela ciência médica, constituiu fator relevante e decisivo para a distinção traçada pelo STF em relação aos demais casos de aborto criminalizado.
No segundo caso, dá-se uma mutação no próprio parâmetro de controle jurídico – no âmbito da jurisdição constitucional, uma mutação no sentido da própria Constituição. Essa metamorfose de significados pode decorrer do processo de reforma formal do texto constitucional – o que é algo comum e até banalizado no Brasil – ou de processos informais que atuam no plano da reconstrução coletiva do sentido das normas constitucionais. Um bom exemplo colhido da jurisprudência do STF foi o reconhecimento do valor jurídico das uniões homoafetivas como uma forma de união estável, para todos os fins do art. 226, § 3 , inclusive a configuração de uma entidade familiar. Ao reconhecer a evolução da compreensão social sobre as uniões homoafetivas, o Supremo ressignificou o parâmetro constitucional de controle aplicável ao caso, passando a reconhecer a incidência das garantias inerentes à união estável também à união entre pessoas de orientação homoafetiva.
Afora tais situações excepcionais – verdadeiras exceções em um Estado democrático de direito – a manutenção da jurisprudência dominante cumpre o papel de verdadeira garantia institucional essencial à preservação da estabilidade e da previsibilidade nas relações sociais e econômicas. O próprio sistema de precedentes depende, para a sua funcionalidade, de um mecanismo regulador eficaz que assegure a aplicação da mesma tese jurisprudencial a todos os casos idênticos, como condição para a redução do estoque de processos sobre a matéria e garantia de isonomia na distribuição da jurisdição. Além disso, a estabilidade jurisprudencial assegura um ambiente de equilíbrio concorrencial entre agentes econômicos, evitando que mudanças de entendimento possam aleatoriamente favorecer alguns em detrimento de outros.
A existência da situação de pandemia viral, com a consequente deflagração de uma crise econômica e social, por maior que seja a sua gravidade, não constitui razão suficiente a justificar uma revisão na jurisprudência dominante do STF, sob o argumento genérico de sua repercussão econômica transcendente. Bem ao contrário, o respeito à jurisprudência da Suprema Corte é um valor em si a ser promovido e celebrado, como um índice a atestar o amadurecimento das instituições no Brasil. Como bem pontuado pelo Ministro Alexandre de Moraes, “o interesse fiscal das Fazendas Públicas devedoras não é suficiente para atribuir efeitos a uma norma inconstitucional.”[1] De igual modo, não é suficiente para retirar a eficácia de uma norma constitucional aplicável a qualquer caso concreto.
Consoante arguta observação de Daniel Goldberg, “a tentação de endereçar desafios fiscais com decisões judiciais é grande, mas o Supremo tem demonstrado maturidade institucional e tem privilegiado a segurança jurídica. Não será fácil manter essa disciplina em tempos de Covid.”[2] Espera-se que o STF transforme o desafio em oportunidade e reafirme, durante a crise, o seu compromisso com o cumprimento irrestrito da Constituição e a preservação dos marcos do Estado democrático de direito.
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[1] STF, Embargos de declaração no RE 870.947, redator p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 03.10.2019.
[2] Goldberg, Daniel. As abelhas e as leis em tempos de Covid-19. Jota, 15.04.2020.
GUSTAVO BINENBOJM – Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor pela UERJ e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.


terça-feira, 12 de maio de 2020


STF vai decidir se tribunal pode determinar novo júri de réu absolvido

11 de maio de 2020, 23h35

O Supremo Tribunal Federal irá decidir se um tribunal de segunda instância pode determinar a realização de novo júri, caso a absolvição do réu tenha ocorrido em suposta contrariedade à prova dos autos. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.225.185, que, por unanimidade, teve repercussão geral reconhecida em sessão virtual (Tema 1.087).
No caso dos autos, o Conselho de Sentença, mesmo reconhecendo a materialidade e a autoria do delito, absolveu um homem levado ao júri por tentativa de homicídio, pelo fato de que a vítima teria sido responsável pelo homicídio de seu enteado. O recurso de apelação interposto pelo Ministério Público estadual (MP-MG) foi negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Segundo o TJ-MG, em razão do princípio da soberania do júri popular, a cassação da decisão só é possível quando houver erro escandaloso e total discrepância. De acordo com o tribunal estadual, a possibilidade de absolvição, em quesito genérico, por motivos como clemência, piedade ou compaixão, é admitida pelo sistema de íntima convicção, adotado nos julgamentos feitos pelo Júri Popular.
Vingança

No recurso ao STF, o MP-MG sustenta que a absolvição por clemência não é permitida no ordenamento jurídico e que ela significa a autorização para o restabelecimento da vingança e da justiça com as próprias mãos.

Em sua manifestação no Plenário Virtual, o ministro Gilmar Mendes, relator do recurso, observou que a questão a ser respondida é se o júri, soberano em suas decisões, nos termos determinados pela Constituição Federal, pode absolver o réu ao responder positivamente ao quesito genérico sem necessidade de apresentar motivação, o que autorizaria a absolvição até por clemência e, assim, contrária à prova dos autos.
Ele lembrou que a reforma do Código de Processo Penal (CPP), ocorrida em 2008 (Lei 11.689/2008), alterou de modo substancial o procedimento do Júri brasileiro, ao introduzir uma importante modificação nos quesitos apresentados aos jurados.
Os jurados passaram, inicialmente, a ser questionados sobre a materialidade (se o fato ocorreu ou não) e sobre a autoria ou a participação do réu. Caso mais de três jurados respondam afirmativamente a essas questões, o Júri deve responder ao chamado “quesito genérico”, ou seja, se absolve ou não o acusado.
Ao reconhecer a repercussão geral da questão constitucional, o relator destacou que o conflito não se limita a interesses jurídicos das partes recorrentes, pois o tema é reiteradamente abordado em recursos extraordinários e em habeas corpus, o que torna pertinente assentar uma tese para pacificação.
Segundo ele, há relevância política e social, pois estão em discussão também temas de política criminal e segurança pública, amplamente valorados pela sociedade em geral.
O ministro destacou que a questão a ser analisada não demanda reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso extraordinário pela Súmula 279 do STF. “Discute-se exclusivamente se a soberania dos veredictos é violada ao se modificar uma absolvição assentada em resposta ao quesito genérico obrigatório”, assinalou. “Vê-se, assim, que o pronunciamento do STF é relevante para balizar demandas futuras”. Com informações da assessoria de imprensa do STF.
ARE 1.225.185

quarta-feira, 22 de abril de 2020

A gestão da prova penal após a Lei Anticrime



A gestão da prova penal após a Lei Anticrime
Uma questão que ainda oscila na jurisprudência brasileira diz respeito às consequências de eventual produção probatória por parte do juiz no processo penal. Embora pareça ser de simples resolução diante do Texto Maior, em âmbito prático ainda há enorme resistência em vislumbrar o óbvio. Mas, Darcy Ribeiro já dizia:
Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. (RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Marília: Lutas Anticapital, 2019, p. 33). Pois passa-se a ele.
Os Tribunais Superiores têm-se manifestado no sentido de que a atuação ex-officio do juiz é permitida em determinados casos, ao argumento de busca pela verdade real, tal como no malfadado artigo 156 do Código de Processo Penal. Ocorre que, a doutrina mais garantista de há muito aponta a incoerência em se atribuir a tarefa de julgar a um terceiro que participe do jogo processual, isto é, como é possível que alguém seja, ao mesmo tempo, destinatário e gestor das provas sem que com elas crie identificação (simpatia), sobretudo em relação às quais produziu ou ordenou a produção?
A temática, dessa forma, está intrinsecamente relacionada à imparcialidade do órgão judicante e a necessidade de preservação da originalidade cognitiva, ou seja, ausência da formação de pré-juízos em relação ao objeto do processo. 
A própria ideia de Jurisdição exige a adoção de um sistema em que esse terceiro se situe em uma posição de distanciamento, de inércia, como um figurante de um filme em que os atores principais são as partes (acusação e defesa) ou um árbitro de futebol durante o jogo, cuja tarefa é a de ser o guardião das normas e aplicá-las quando cabíveis, sem se imiscuir nas atividades dos jogadores.
O juiz deve, portanto, entrar e permanecer no jogo alheio ao interesse das partes, ainda que isso lhe custe desconforto pessoal como ser-no-mundo. A questão é, recordando Ernst Kantorowicz (Cf: KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei. 1ª Ed. Companhia das Letras, 1998), o adequado tratamento dos “dois corpos do rei”, ou seja, decisão judicial não é sinônimo de escolha. Há um “corpo físico e outro espiritual”. Na vida privada, pouco importa as escolhas que fizer, mas na esfera pública o magistrado tem responsabilidade política e deve agir por princípio, suspendendo pré-juízos e opiniões pessoais (STRECK).
Feitas essas considerações iniciais e retomando o curso para a questão central, apresenta-se os fundamentos normativos para que se possa, até mesmo por conta própria, responder à indagação: quais as consequências da atuação de ofício do magistrado no processo penal?
Um dos grandes avanços civilizatórios proporcionados pela ordem constitucional de 1988 fora o fortalecimento de uma estrutura dialética de processo, onde cabe às partes a tarefa de gestão das provas.  O art. 129, inciso I, da Constituição Federal, estabelece como função institucional e privativa do Ministério Público, a promoção da ação penal pública.
Logo, o texto constitucional não diz advogado, defensor público, magistrado. Por isso, é preciso respeitar os limites semânticos de um texto, eis que é ele a condição de possibilidade para uma interpretação constitucionalmente adequada (veja-se nesse sentido os avanços no campo da hermenêutica filosófica com Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger. No Brasil, Lenio Streck tem capitaneado a luta). 
Quis o novel constituinte claramente estabelecer a separação das funções no jogo processual penal. Isto é, no actum trium personarum, desde Búlgaro, às partes – acusação (MP) e defesa – cabem a tarefa de gestão das provas, e a um magistrado imparcial, o dever de julgar conforme o Direito. No entanto, no Brasil isso sempre foi mal compreendido. Não é novidade nenhuma a aliança firmada entre Ministério Público e Judiciário em algumas comarcas deste país: juízes que produzem prova, promotores que presidem audiência, etc. Tudo à revelia da Constituição.
A reforma processual de 2008 introduziu mudança substancial no art. 212 do CPP, adotando expressamente o cross examination
Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição
Observa-se que ao magistrado somente é dado o direito de complementar a inquirição sobre pontos não esclarecidos, mas não de promover a acusação como parte, ante a nítida violação ao dever de imparcialidade. Ora, quem procura, procura algo, e diante do princípio constitucional da presunção de inocência, o que precisa ser encontrado é prova para condenação, não para absolvição. Se o magistrado é quem produz a prova, a própria ideia de complementaridade resta maculada. Simples, pois.
Não obstante vigente desde 2008, o cross-examination é objeto de relativização por parte da jurisprudência brasileira, cujo entendimento majoritário, ao menos anteriormente à introdução do art. 3º-A no CPP, é o de que a inobservância gera, no máximo, nulidade relativa, cujo reconhecimento demanda que a parte o alegue em momento oportuno e demonstre o prejuízo, além de contar com uma dose de boa vontade e subjetivismo dos Tribunais. 
No RHC 113.293/SP, por exemplo, o STJ concluiu que “a formulação das perguntas das partes pelo Magistrado, e não diretamente, embora não observe a redação do art. 212 do Código de Processo Penal, não revela, por si só, nulidade processual.” De outro lado, de maneira excepcional, no REsp 1259482/RS reconheceu a nulidade em razão do magistrado ter protagonizado a inquirição, em nítida substituição do órgão acusatório.
A despeito da jurisprudência vacilante, acredita-se que com o advento da Lei nº 13.964/2019, com destaque para a redação do art. 3º-A do CPP, o tema deve ser pacificado no sentido de que a inobservância ao dispositivo supratranscrito – e a qualquer outro que objetive a preservação do sistema acusatório – ocasionará a nulidade absoluta, com a anulação dos atos praticados e dos com que ele se relacione, assim como afastamento da autoridade psiquicamente contaminada para atuar no feito (art. 157, §5º, CPP).
Não bastasse mais de 30 (trinta) anos de redemocratização, inúmeros patuleus sacrificados em um processo penal primitivo, rios de tinta e recursos públicos gastos para reafirmar o óbvio, tal como recentemente fez o art. 3º-A do CPP, ainda sim setores da comunidade jurídica repetirão resquícios da Idade Média como “verdade real e plenitude de acusação”? 
A nosso ver, o que antes já encontrava amparo nos artigos 129, inc. I, da CF e 212 do CPP é reafirmado pelo denominado “Pacote Anti-crime” ao expressamente vedar a iniciativa probatória do juiz e a substituição do órgão acusatório.  
Se for dado ao magistrado o poder de produzir toda a prova que mais tarde irá utilizar para condenar o indivíduo submetido ao processo penal, não faz sentido algum que a viúva arque com os altos custos para a manutenção da instituição ministerial. Há de se rechaçar atitudes como essa ou admitir que não se respeita mesmo os limites da lei. Só se pode complementar o que antes já se iniciou. Tertium non datur.
Entretanto, não é demais lembrar que o Direito é um campo fértil para a institucionalização das relações simbólicas de poder e o lócus privilegiado de sustentação do status quo, principalmente em um quadrante histórico em que a legalidade constitucional tem sido suplantada por argumentos morais de diversas ordens.
Resta saber se os setores do poder permitirão o diálogo leal e democrático, como deve ser. Que o jogo tenha paridade de armas e não estratégias de bastidores e corporativismos. Até então, a ideia que fica é a de que “faltou combinar com os russos.”
(Registra-se que os artigos 3º-A e 157, §5º, do CPP, assim como as inovações que tratam do Juiz das Garantias, encontram-se com a eficácia suspensa por força de decisão monocrática do Min. Luiz Fux que deferiu cautelar nas ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, ao argumento de que, em juízo perfunctório, pode-se verificar possível ofensa ao art. 96 da Constituição Federal (inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa), dada a natureza jurídica, na visão dele, híbrida da norma (processual, mas também de organização judiciária). A matéria resta pendente, portanto, de apreciação pelo plenário da Suprema Corte.)


terça-feira, 14 de abril de 2020

Desembargador concede HC a homem que violou medida protetiva e agrediu ex



12 de abril de 2020

A prisão preventiva, no âmbito da Lei Maria da Penha, é medida excepcional, que se justifica apenas e exclusivamente para evitar a ocorrência de um mal maior.

Desembargador concede HC a homem que violou medida protetiva e agrediu ex.

Com esse entendimento, o desembargador Diógenes V. Hassan Ribeiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, concedeu habeas corpus a um homem que estava preso por descumprir medida protetiva e agredir sua ex-companheira e a irmã dela.

Ao analisar o caso, o desembargador considerou a excepcionalidade da preventiva e que o boletim de ocorrência também registra a existência de possíveis desentendimento mútuos.
Assim, afirmou, “em que pese o descumprimento, em tese, das medidas protetivas de urgência, as circunstâncias do caso concreto autorizam a revogação da prisão preventiva”.

“A prisão preventiva para a garantia do cumprimento de medidas protetivas, no âmbito da Lei 11.340/2006, somente se justifica e deve persistir no calor dos acontecimentos, para evitar um mal maior, especialmente porque eventual condenação não gerará pena privativa de liberdade. Não é possível manter a prisão por tempo excessivo”, escreveu o magistrado.

(PROCESSO ELETRÔNICO) DVHR Nº 70084121318 (Nº CNJ: 0050490-21.2020.8.21.7000)